Presença-Mulher: a força feminina

(Texto de apresentação da exposição - 30 de março de 2017)
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
(Conceição Evaristo)

A exposição "Presença-Mulher" foi pensada como uma ação afirmativa com o intuito de celebrar e marcar, nesse cenário político em que nos encontramos, o Dia Internacional da Mulher, dando visibilidade às mulheres que trabalham e atuam no C.A. João XXIII, bem como celebrar a diversidade feminina presente no espaço escolar. Entre corredores, salas e escadas, vamos cotidianamente de um lado para o outro. Somos profissionais, mães, professoras, psicólogas, serventes, pesquisadoras, artistas, técnicas, pedagogas, mulheres... Limpamos, educamos, escrevemos, administramos, pensamos, pesquisamos e, em meio a tantas demandas e tanto trabalho, deixamos de nos perceber, de nos mirar umas às outras e de olharmos para nós mesmas.
A experiência de fotografar cada uma de nós que habita e trabalha no colégio foi para mim transformadora. Pedi que cada modelo se pensasse enquanto mulher, profissional, mãe, pesquisadora, professora, em uma dimensão do seu feminino, do que compreende sobre a experiência do "ser-mulher", e escolhesse em que lugar do colégio gostaria de ser fotografada e como, com roupa, objetos, frases, adereços, maquiagem que trouxesse. Busquei, enfim, que cada uma pudesse, ao mesmo tempo, perceber-se e pensar qual imagem de si mesma gostaria de ver retratada na exposição.
Ao olhar, pela lente da câmera, as peles, vozes, olhos, corpos, seios, mãos e bocas, fui me dando conta da beleza de cada uma das minhas colegas de trabalho; como gestos, reações e corporeidades revelavam tanto, sobre si mesmas, em uma dimensão que jamais teria podido conhecer e captar de cada uma no corre-corre diário, se não fosse por essa experiência. Os corpos se apresentavam a mim cheios de histórias, em fases distintas e diferentes da vida, que pulsam e teimam em saltar aos nossos olhos, com suas marcas, passagens, transformações, construções e reconstruções. Quantas não se preocupavam com o fato de que o obturador, no momento do clique, captasse a passagem do tempo em seus corpos, como se ele também pudesse captar as suas dores, vitórias, conquistas, perdas, medos, sonhos, amores... Como fazê-las perceber que essa passagem do tempo, com suas marcas e cicatrizes, é exatamente o que as tornam tão belas? Nas imagens por mim captadas e apresentadas ainda no visor da câmera, algumas se detestavam, outras se deslumbravam, em um processo simultâneo de rejeição e aceitação da própria imagem. 
A metodologia utilizada na construção do trabalho se pautou nos referenciais teóricos da arte-terapia, experiência que, particularmente, chamo de foto-terapia. Nesse processo, as fotografias foram realizadas tendo como foco o registro, a tentativa de captar algo da essência e da autoimagem que as fotografadas gostariam de ver e fruir de si mesmas, indo além de apenas um ensaio fotográfico. Portanto, em muitos momentos valorizei o ângulo, o fundo e o enquadramento focados muito mais na necessidade das fotografadas, no que gostariam de expressar, do que na busca por uma autoria, estilo e linguagem fotográfica própria. Deixei, desse modo, a fotógrafa em um segundo plano, tentando descobrir em mim sentidos e habilidades para acolher os sentimentos das minhas modelos em relação à sua autoimagem e acomodá-los à dimensão da técnica e da produção fotográfica. Privilegiei o vigor feminino ao rigor técnico.
Foram fotografadas 106 mulheres em 3 semanas de trabalho intenso, procurando sempre me adequar às disponibilidades das modelos. Algumas não quiseram ser fotografadas, demonstrando a dificuldade de saírem da invisibilidade que as desigualdades existentes nas diversas formas do "ser-mulher" reservam para nós. Suas ausências também nos dizem muito e nos levam a pensar.
Ao longo do processo, eu apenas via as diferentes fases da vida e a beleza em cada uma delas, meninas, mulheres, senhoras, guerreiras, rainhas... Eu me maravilhava com seus sorrisos, com os seus olhares, caras e bocas, com seus jeitos, com as suas personalidades, com as suas complexidades... E queria dizer a cada uma delas como são lindas, como são espetaculares em cada idade, com cada ruga, cada marca, cada cicatriz que as constituem, que, em seus corpos e suas essências, se materializam de uma forma plena e intensa em tudo aquilo que são. Queria poder dizer como cada um dos detalhes do que vi e vivi durante as sessões, me contaram histórias lindas e fortes, fundamentais nessa escola, nesse espaço. Percebi, ao fim de tudo, que muitas de nós ainda vivemos presas a um padrão de beleza e a uma construção do “ser-mulher” que não correspondem aos nossos próprios corpos, às nossas vidas e ao que somos.
Como um mosaico de tantas experiências e vidas, quem sai desse processo repensando a si mesma, a sua própria imagem, sou eu. Quantas mulheres cabem dentro de mim? Quantas mulheres cabem em cada uma de nós? Quantas de nós existem? Por isso, a fotografia por mim escolhida, o meu autorretrato, buscou simbolizar, de alguma forma, o desnudamento que cada uma possibilitou a mim, na frente da câmera.
Se fotografar é desenhar com a luz, essas imagens refletem a luz de cada uma das fotografadas, refletem a personalidade que cada uma permitiu que a mim fosse revelada. E eu, que aqui só posso agradecer, ofereço a todas uma pequena amostra do que essa aprendiz de fotografia tentou captar. Desejo que outras experiências afirmativas como essa se disseminem pelo colégio, no intuito de construirmos um espaço mais prazeroso e saudável de convívio, mais equânime, humano, democrático e ético.
Os desafios que as mulheres enfrentam em pleno século XXI são imensos. Sofremos violências, preconceitos, silenciamentos, invisibilidades, abandonos e mortes cotidianamente. Temos que nos desdobrar para dar conta de todas as nossas esferas de atuação, dar conta das duplas e triplas jornadas de trabalho, dar conta da solidão na vida e, muitas vezes, na criação dos filhos. Parar e olhar para nós mesmas é uma das aberturas possíveis para esse reencontro com nossos próprios sentimentos, com nossos próprios caminhos. Sem nos unirmos, nos irmanarmos, sem sororidade, resiliência e luta não conseguiremos, enquanto mulheres, enfrentar os desafios que esse atual panorama político nos impõe.
A nossa presença nesse cenário é imprescindível. Presença-Mulher.


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